Correio Braziliense – 27/09/2015
Em novembro do ano passado, afirmei em artigo: “Os acontecimentos decorrentes das investigações do petrolão estão abalando as estruturas da política nacional. É certo dizer que nada, nada será como antes, depois do escândalo”. Na minha argumentação, mencionei a obra de Sérgio Lazzarini (Capitalismo de Laços, Elsever), na qual o autor descreve, de forma clara, como funcionava o modelo político no país: “O mundo político opera como grande agente dos interesses privados na obtenção de contratos de obras públicas e de fornecimento para empresas estatais”.
Antes, o capitalismo tupiniquim operava a partir de uma relação íntima e espúria entre o setor privado e o setor público, intermediada por políticos. Recursos por dentro e por fora azeitavam os negócios e a expansão das empresas no Brasil. E se dizia, simplesmente, que era assim mesmo. Os recursos fluíam financiando partidos, políticos e a vida de mordomias de muitos. Doleiros agiam como banqueiros do crime. Diretores da Petrobras ficaram milionários agenciando a empresa. Políticos financiavam reformas em moradias e compra de imóveis. Partidos recebiam dinheiro sob as mais variadas explicações. Para muitos, os fins justificavam os meios. Tudo em nome dos projetos de poder.
Muitas prisões e delações premiadas depois, as coisas estão acontecendo, basicamente, como eu previa. Esse modelo de relacionamento entre empresas, setor público e políticos está definitivamente comprometido. Empresas buscam níveis inéditos de governança e compliance para se adequarem aos novos tempos, onde a defesa de interesses não pode ser turbinada à base de corrupção.
Recentemente, com os acordos de leniência feitos pela Construtora Camargo Corrêa com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), no âmbito da Operação Lava-Jato, que investiga as denúncias de corrupção na Petrobras, tivemos o assentamento de marco importante do processo de transformação do capitalismo brasileiro. O acaso do petrolão veio para mudar radicalmente tudo. A empresa vai pagar R$ 104 milhões em multas, o que representa a maior indenização do tipo paga por uma empresa aos cofres públicos.
Os acordos da Camargo Corrêa marcam o início de nova era. Eles são absolutamente relevantes para o país. Primeiro, por trazerem solução para o impasse que assola o setor de infraestrutura. Ora, as empresas não podem deixar de existir. Devem ser punidas, pagar pelos seus erros, mas seguir adiante. Não existe pena capital entre nós. E assim deve ser com a Operação Lava-Jato. O acordo com o Cade aponta nessa direção.
Outro aspecto é que os acordos embutem compromissos de conduta que tratam de cartéis e de corrupção. As duas práticas devem ser banidas do processo de contratação das obras públicas no Brasil. Com os acordos, a Camargo Corrêa sinaliza estar se adequando aos novos tempos. E, por seu lado, o Cade atua no sentido de normalizar as relações econômicas entre as companhias e os entes públicos.
A iniciativa é a primeira entre as grandes empreiteiras que reinaram nas obras públicas do país nas últimas décadas. As firmas envolvidas na Lava-Jato terão de fazer acordos ou perecer, já que ficarão impossibilitadas de existir sem o compromisso de atuar de forma ética e transparente de ora em diante.
Espera-se que o exemplo do acordo de leniência com o Cade inspire outras iniciativas semelhantes por parte da Procuradoria-Geral da República e da Controladoria-Geral da União. Temos de destravar o funcionamento das empresas a partir de novas bases éticas, de concorrência e de conduta empresarial. E o caminho passa, obrigatoriamente, por novos acordos de leniência.
Outras iniciativas devem ser tomadas. A justiça deve inovar na busca por acordos de conduta dos partidos políticos nas suas relações com doadores. Nenhuma espécie de recurso poderia ser doado aos partidos por quem vende serviços e produtos para entes públicos. Uma regra simples que pode afastar, ainda mais, o espectro da corrupção em obras públicas. Basta incluir tal dispositivo nos contratos. Não há necessidade de uma reforma política ampla para promover pequenos e relevantes avanços.
No âmbito das contratações, o governo deve abrir as concorrências para empresas estrangeiras. E também exigir, conforme as empresas do setor privado fazendo com seus fornecedores níveis elevados de governança e compliance, bem como com a adesão irrestrita a protocolos de medidas anticorrupção.
Na falta de regras claras, prevalecem os protocolos de conduta preconizados pelo Foreign Corrupt Protection Act dos Estados Unidos, além do que é determinado pela Lei nº 12.846/13 (conhecida como Lei Anticorrupção). Essa lei ratificou, no âmbito legal brasileiro, o 11º princípio do Pacto Global das Nações Unidas, que estabelece que “as empresas devem combater a corrupção em todas as formas, incluindo extorsão e propina”. Outra ação simples seria a criação de um canal direto de denúncias de corrupção junto ao Ministério Público estadual e federal para que todos possam fazer delações e que elas possam ser investigadas de forma preliminar.
O governo deve ser mais transparente nas regras de licitação e reduzir, dramaticamente, a burocracia, que é um dos vetores mais relevantes de corrupção no país. De forma clara, os poderes públicos devem se engajar no aperfeiçoamento das regras de contratação de obras e serviços e das normas que disciplinam o relacionamento entre servidores públicos e cidadãos. É o momento de renovar o capitalismo brasileiro. Os acontecimentos decorrentes da Lava-Jato apontam um caminho. Devemos segui-lo.