Apontei em meu e-book Ano Zero que a ordem global, tal como a conhecemos desde o fim da II Guerra Mundial, estava em crise antes mesmo da Covid-19. A pandemia apenas agravou as tendências existentes e nos impôs novos desafios. Pelo menos três fatos associados à governança global durante a pandemia evidenciam a necessidade de um novo padrão, que seja eficaz, de relações entre as comunidades.
O primeiro é a dificuldade de a Organização Mundial da Saúde se posicionar com clareza. A OMS foi lenta e ainda é confusa em suas recomendações. Os Estados Unidos atribuem o problema a um predomínio chinês na entidade. A OMS vive uma crise de credibilidade.
O segundo fato reside na omissão da Organização das Nações Unidas durante a pandemia. A ponto de muitos questionarem a própria utilidade da organização, deixando patente a urgência de ela se reinventar. Não houve, até agora, por exemplo, nenhuma reunião do seu Conselho de Segurança para tratar do tema.
O terceiro fato é constatado na demora (e na insuficiência) de as instituições financeiras internacionais, como o FMI e o Banco Mundial, se mobilizarem para produzir um pacote de iniciativas que possam mitigar os trágicos efeitos econômicos da doença no mundo.
OMS, ONU, instituições financeiras: os principais pontos de apoio da governança global — haveria outros exemplos — dão flagrantes demonstrações de ineficácia. Diante de uma crise sanitária de escala planetária, nenhum desses órgãos foi capaz de articular uma ação conjunta em nível planetário. A crise profunda em que se encontram os organismos internacionais lembra o naufrágio da Liga das Nações, criada com as melhores intenções no pós-I Guerra Mundial. A organização morreu pelo desinteresse dos EUA, pela agressiva política de Adolf Hitler e por uma estrutura decisória paralisante. Não esteve à altura do imperativo de mediar as tensões dos anos 1930 e seu fracasso deu lugar à II Guerra Mundial.
O modelo criado no pós-II Guerra experimentou amplo sucesso nos últimos 75 anos. Tendo a ONU como centro, impediu novas grandes guerras, conteve a proliferação nuclear e liderou ações humanitárias. Mas perdeu a dinâmica. Alguns choques internacionais produzem um sentimento de abandono e isolamento. Em 2020, quando essa ordem dava sinais de esgarçamento, veio a pandemia e, por falta de lideranças, nossa reação ao novo coronavírus só fez acentuar essa deterioração.
O Brasil deve observar os acontecimentos e avaliar que prioridade dará ao resgate e ao aprimoramento das estruturas de governança global. Deve ponderar a relevância que lhe convém atribuir ao fortalecimento dos mecanismos de ação multilateral num mundo marcado por problemas que não respeitam fronteiras e pela disputa hegemônica entre Estados Unidos e China. Deve refletir, ainda, à luz de interesses concretos, acerca de seu relacionamento com essas potências. Como nação, devemos olhar o passado, entender o presente e, com sentido de realidade, dar nossa construção de um futuro com maior segurança. Em todos os sentidos.
Publicado em VEJA de 8 de julho de 2020, edição nº 2694