12/01/2017
Estadão
A Operação Lava-Jato propõe-se a algumas missões. Não apenas à mais óbvia, que é julgar os malfeitos apurados. São pelo menos três missões. Todas com um claro fundo de boas intenções. Nem todas republicanas nem constitucionalmente aceitáveis. Afinal, não basta ter boas intenções.
No âmbito judicial, a Lava-Jato adota um novo Direito Penal a partir de práticas que não eram historicamente correntes em nosso Direito. A saber: a condução coercitiva sem prévia recusa a comparecer, as prisões temporárias de largo alcance e o uso intensivo de delações premiadas. Há quem diga que a Lava-Jato também reduziu a relevância da presunção de inocência, pilar básico dos direitos fundamentais.
Algumas dessas práticas estão sendo empregadas de forma tática para obter um fim específico. Por exemplo: imagina-se que se Marcelo Odebrecht não tivesse ficado tanto tempo em prisão temporária não teria concordado em fazer o acordo de delação. Imagina-se também que para que Alberto Youssef se decidisse a assinar o acordo teria sido alertado sobre todo o sofrimento por que passou Marcos Valério, inclusive com detalhes horripilantes até hoje não divulgados publicamente.
Parte daquilo a que o comando da Lava-Jato se propõe, com as melhores das intenções, decorre de um ativismo judicial típico de nossos tempos e que encontra abrigo na omissão acanhada do STF. Que, emparedado pela barragem midiática, não consegue conter o ativismo em limites constitucionalmente aceitáveis.
A criação de um novo Direito Penal é uma missão da Lava-Jato, que buscou no estímulo à proposta conhecida como 10 Medidas contra a Corrupção legalizar o que já pratica. Ainda que para tal tenha proposto absurdos como o famigerado “teste de integridade” e a admissão de provas ilícitas colhidas de boa-fé.
Em decorrência, destaca-se a segunda missão da Lava-Jato: uma missão redentorista, messiânica, de purificação dos atos e costumes políticos e empresariais no País. Daí o teste de honestidade e a boa-fé como legitimadores de provas ilícitas.
A missão redentorista parte do pressuposto correto de que a política nacional é um embuste que visa a assegurar o predomínio de grupos políticos e econômicos sobre os recursos públicos por meio da distribuição de propinas e de favorecimento. O que é, no mínimo, a negação do ideal democrático.
Como a prática e a narrativa política são promíscuas, a Lava-Jato tem a clara missão de purgar os vícios do sistema. Daí ser praticamente impossível criticá-la. E como um país que delira numa utopia rasa, achamos que está tudo bem. Afinal, não se faz uma omelete sem quebrar os ovos.
Nesse ponto, a operação flerta com a religião e busca abrigo no fundamentalismo. Ampara-se no velho bordão que justificou tantas atrocidades mundo afora: os fins justificam os meios. Faz parte de uma guerra. Talvez a revolução mais relevante, em termos ideológicos, desde o movimento tenentista.
Foi assim com a Inquisição. É assim em Guantánamo. Paradoxalmente, é a mesma base que impulsionou os criminosos do mensalão e do petrolão. Seria uma espécie de “vale-tudo” para se dar bem. E, por outro lado, um “vale-tudo” para fazer o bem. Triste dicotomia, amparada num único princípio.
Como parte da visão redentora, revela-se a terceira missão da força-tarefa: a “midiatização” de seus procedimentos. A denúncia de Lula, sem analisar o mérito – já que as provas contra ele são robustas –, foi um espetáculo midiático que guarda relação com iniciativas religiosas evangélicas e renovadoras da Igreja Católica. Um espetáculo que busca sancionar o que está sendo dito, como se o dito pudesse valer pouco se não vier acompanhado do devido rito espetacular!
Os vazamentos de depoimentos também fazem parte desse processo. Algumas vezes, os vazamentos são seletivos e parciais, visando a fins específicos. Sobretudo aquecer a temperatura da imprensa e da opinião pública, objetivando aumentar a pressão sobre o mundo político e as esferas superiores da Justiça.
A narrativa da denúncia sobrepõe-se ao valor ontológico da própria denúncia. Na prática, os vazamentos seletivos são uma iniciativa que visa a desarmar movimentos de gabinete que possam quebrar o ritmo de aventura que a operação quer impor aos processos.
O que esperar de tudo isso? Será que as missões da Lava-Jato vão sobreviver às suas contradições? Sim e não.
Sim, pelo fato óbvio de que a operação já mudou o sistema político em aspectos fundamentais: o financiamento das campanhas e a prisão de muitos políticos. Outros tantos serão presos e muitos ficarão inelegíveis. Jamais as eleições serão financiadas como o foram até 2014.
O sentimento antipolítico vai gerar uma nova política, que, não necessariamente, será melhor no curto prazo. Mas certamente será mais limpa. Vai produzir também um eleitorado mais atento às narrativas. O debate se dará com base em princípios que a Lava-Jato ensina todos os dias.
O “não” vai decorrer do fato de que uma parte do ativismo radical da força-tarefa será limada nas esferas superiores. O tempo vai se encarregar de recolocar algumas coisas no seu devido – ou indevido – lugar. O establishment é poderoso e tem capacidade de adaptação. Certos ativismos são incompatíveis com o Direito Constitucional.
E como lição da História temos o fluxo tradicional de eventos traumáticos: conflitos, regulação e estabilidade. Até que novos conflitos sobrevenham. Nos próximos meses veremos o ápice do conflito causado pelas investigações. Depois veremos a regulação desses conflitos e, posteriormente, um ciclo de estabilidade institucional. Que, não necessariamente, começará com as eleições de 2018.
O saldo de tudo, porém, será extraordinário. Quase uma Lei Áurea.