Murillo de Aragão: “A inteligência política do governo Dilma é precária”
FELIPE PATURY E MARCELO SPERANDIO
Antes de tomar decisões envolvendo o Brasil, os gestores de 80 fundos de investimento escutam o cientista político Murillo de Aragão. Fundador da consultoria Arko Advice, Aragão mantém uma clientela de grandes bancos e multinacionais. Todos querem examinar os desafios que o governo Dilma Rousseff tem pela frente e suas chances de superá-los. Aragão deixa claro que Dilma precisará de mais perícia do que tem mostrado até agora. “Ela precisa recuperar a economia, dialogar mais e melhor com sua base no Congresso e isolar a Petrobras do petrolão.” Depois de uma conferência com 200 clientes de Cingapura, o autor de Reforma política, o debate inadiável concedeu a seguinte entrevista.
ÉPOCA – Que desafios a presidente Dilma Rousseff enfrentará em 2015?
Murillo de Aragão – Ela precisará resolver de forma eficiente três heranças do primeiro mandato. A primeira: a economia está malparada, porque a credibilidade fiscal foi seriamente abalada. A segunda herança é a questão política, que nunca foi bem resolvida em sua gestão. O apoio dos políticos ao governo Dilma sempre foi instável. Isso foi agravado pela eleição, porque, nos Estados, houve disputa entre os aliados do Planalto. A terceira herança é o petrolão. No fundo, ele trata da forma de como se faz política no Brasil. Ela precisará recuperar a economia, dialogar mais e melhor com sua base no Congresso e isolar a Petrobras do petrolão.
ÉPOCA – Quais são os riscos econômicos?
Aragão – Os riscos estão em duas dimensões: a situação real e a sensação térmica. Em 2014, a economia não foi bem, mas a sensação térmica era confortável. Por isso, não atrapalhou muito o desempenho eleitoral de Dilma. Se a sensação térmica da economia piorar em 2015, a popularidade dela, que vem crescendo, poderá começar a cair. Para que Dilma tenha autoridade diante do Congresso e força eleitoral para indicar seu sucessor em 2018, é essencial que as expectativas econômicas sejam minimamente positivas.
ÉPOCA – O senhor pode fazer uma análise mais detalhada do risco político?
Aragão – Há um ponto de interrogação no Congresso por causa de duas questões. Uma é de aspecto formal: as eleições para as presidências da Câmara e do Senado. A outra questão está relacionada ao alcance das investigações do petrolão. Se elas tiverem o caráter devastador que muitos sugerem, o petrolão afetará a elite parlamentar brasileira. Algumas das principais lideranças do Congresso poderão ser atingidas pelas investigações. Esse é um problema que se torna ainda maior dentro de um governo com deficit político.
ÉPOCA – O que o senhor quer dizer com deficit político?
Aragão – O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva criou uma base política grande, que o protegia e tinha autonomia propositiva. Era um governo com força para propor e ser atendido pelo Congresso. Essa base era mantida por um diálogo eficiente. Lula tinha disposição para a conversa com as lideranças políticas, empresariais, sindicais e de movimentos sociais. Existia um software de diálogo, que facilitava o trânsito do governo com o Congresso e com a sociedade. No governo Dilma, essa dinâmica perdeu as qualidades que tinha. O relacionamento entre o governo e o Congresso se tornou cada vez mais áspero, marcado pela impaciência de lado a lado. É esse o deficit político de que falo. Ele aumentou com a eleição, porque muitos aliados do governo no plano federal se sentiram traídos ou esquecidos nas disp utas estaduais. Houve a sensação de que a relação do PT com os demais partidos não era confiável. Dilma entra em 2015 com um sério deficit político.
ÉPOCA – Houve um governo que começasse cercado por tantas incertezas?
Aragão – O início do segundo governo Dilma guarda relação com o segundo mandato do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e com o primeiro mandato de (Luiz Inácio) Lula (da Silva). No caso de Fernando Henrique, a base política auxiliou o presidente a recuperar o país de uma crise cambial. Lula tinha amplo apoio popular, acabara de ser bem eleito. Isso o ajudou a encarar a questão financeira e a resgatar a credibilidade econômica. Dilma começa o novo mandato com desafios bem maiores que os antecessores. Poderá haver uma conjunção horrível para ela mais à frente: a economia pode ir mal, a popularidade pode cair e o apoio no Congresso pode ser perdido. É a tempestade perfeita.
ÉPOCA – O governo não tem instrumentos para ultrapassar essa turbulência?
Aragão – Em tese, sim, mas a inteligência política do governo Dilma é precária, com uma sucessão de erros incrível. É diferente dos mandatos de Lula, que exibiram um elevado quociente de inteligência política. Observe que, entre as gestões de Fernando Henrique e Lula, os parlamentares ficaram 12 anos sem votar vetos presidenciais. Com Dilma, o governo irritou tanto o Congresso que ele passou a votar os vetos presidenciais. É um absurdo o Parlamento se eximir dessa responsabilidade? Sim, mas ele estava acomodado. O Congresso só saiu da letargia porque estava aborrecido com o governo Dilma. Outro exemplo é o orçamento impositivo. Ouço falar dele há 30 anos. Só agora esse debate avançou. Por quê? Porque o Congresso se sente rebaixado em sua relação com o Planalto. São aç& otilde;es de retaliação, decorrentes da falta de inteligência política do atual governo.
ÉPOCA – A ameaça de uma crise detonada pelo petrolão, com uma sequência de processos de cassação no Congresso, poderá impulsionar a reforma política?
Aragão – Toda vez que surge uma crise, se fala na reforma política. Com isso, nas últimas décadas, ela vem ocorrendo em fatias. Parece que, agora, existe um interesse maior dos atores políticos em fazê-la. Há um movimento na sociedade, liderado por algumas entidades, a favor da reforma. O petrolão quebrou o modo como a política brasileira e as campanhas eleitorais foram financiadas até hoje. É necessário partir para um novo modelo. Não é possível que um país como o Brasil gaste R$ 5 bilhões em campanhas eleitorais, como ocorreu em 2014. Precisamos impor um limite para essas despesas. O teto deveria ser definido em lei. Quem o ultrapassasse deveria ser cassado. Também seria bom fazer coincidir os calendários das eleições municipais, estaduais e presidencial. O país se mobilizaria d e uma vez só e daria um horizonte de mais estabilidade aos governos eleitos. O Congresso funcionaria melhor. Outra coisa: grande produção legislativa não significa qualidade legislativa. Não se deve medir a eficiência do Parlamento pelo volume de leis aprovadas. Os avanços democráticos precisam ser preservados. Se for mantido o atual sistema político, a degradação será inevitável.
ÉPOCA – É possível que um Congresso composto de 28 partidos tenha um bom fluxo de trabalho?
Aragão – Possível é, mas é difícil. Exige uma perícia que a gente não conhece. Nosso sistema partidário é gelatinoso. A lei atual permite que novos partidos sejam criados para “pescar” parlamentares noutras legendas e, depois, sejam fundidos em outros mais velhos. É uma forma de os parlamentares eleitos por um partido mudarem para outro sem perder o mandato. É tudo legal, mas é uma fraude.
ÉPOCA – Caso a reforma política seja esquecida, o sistema político poderá ser empurrado para mudanças autoritárias?
Aragão – Não vejo a possibilidade de um autoritarismo de forma clássica, como uma volta dos militares ao poder. Percebo que a disfunção democrática agravará o autoritarismo que hoje já existe na relação entre o Estado e a sociedade. O autoritarismo se manifestará com o caráter subalterno do cidadão perante o Estado, com a prevalência dos interesses das corporações sobre o bem comum, com a apropriação do interesse público em detrimento do interesse da sociedade, com o sequestro da política pelos políticos. Essas soluções autoritárias representam os maiores desafios para o Brasil. Se não melhorarmos o sistema político, a disfunção se agravará.
ÉPOCA – O resultado da eleição presidencial mostra que surgiu um antipetismo no país?
Aragão – Sim, especialmente no eleitorado mais urbano e instruído. Ao mesmo tempo, também houve um volume de abstenções, de votos brancos e nulos. Isso deve ser considerado. O que há não é um país dividido em dois, mas em três. A gente vive um paradoxo. De um lado, temos uma presidente reeleita com a maioria dos votos. Do outro, a maioria do eleitorado não está engajada a favor dela. É um governo que agrada muito, mas também desagrada muito. A situação é complicada para Dilma. No Brasil, o presidente sempre ganhou pelo consenso. Pela primeira vez, a eleição foi vencida pelo dissenso.