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Sacrifício não pode ser em vão

A terrível morte do menino carioca João Hélio me lembrou outra morte não menos trágica. Um menino foi atropelado quando descia do ônibus em frente ao prédio da Administração do Lago Sul, em Brasília. Ia jogar futebol no campinho dos Bombeiros. Entretanto, diferente de tantas, sua morte não foi em vão.


 


A partir dela, as autoridades do trânsito passaram a exigir com rigor o uso do cinto de segurança e, sobretudo, a obrigatoriedade de os veículos pararem nas faixas de pedestres. Um avanço extraordinário, considerando a grotesca falta de educação do motorista brasileiro. Brasília, apesar de não ter um trânsito de primeiro mundo, é de longe a melhor cidade do país em matéria de obediência dos motoristas às regras básicas.


 


O pior de tudo é que o dramático desaparecimento de João Hélio é a síntese perfeita de vários outros dramas: o suplício do menino martirizado de forma brutal, o sofrimento de sua família marcada pela dor indelével de uma perda estúpida. Se possível separar as dimensões pessoais e públicas de tanto horror, o maior drama para os brasileiros é constatar a existência de uma sociedade que se deixou ficar assim.


 


Como carioca, me entristece admitir a existência de uma sociedade tão rendida à violência crescente. É chocante perceber que parte da mídia é complacente com o universo cultural da droga que permeia toda a violência no Rio de Janeiro.  


 


De modo geral, a sociedade, e em particular os poderes públicos, são omissos em relação às questões de segurança. O tema é tratado com olímpico distanciamento, manchetes de curta-duração ou por meio de factóides, como a  cobertura do que faz a inoperante Força Nacional. Tal omissão nos coloca em uma situação de descontrole e perda da tutela pública sobre várias áreas nas grandes cidades.


 


Longe de ser um mal, para quem vive nas áreas conflagradas as milícias que se organizam espontaneamente no Rio de Janeiro são uma resposta de setores mais prejudicados à incompetência pública. Usar carros blindados e contratar segurança privada também são conseqüências da degradação da segurança pública no Brasil.


 


Em artigo de fim de semana, Ferreira Gullar indagou se a pobreza era a raiz da violência. A pobreza, sem dúvida, causa violência. Mas, o que a estimula e consolida é a cultura. Há muitos anos o Rio de Janeiro é a síntese da cultura da violência alimentada pela corrupção endêmica do estado e a vista grossa das elites aliada à incúria dos poderes públicos.


 


Para muitos, não tem nada demais consumir um pouquinho de cocaína.  Sendo a inserção light no mundo do crime socialmente aceita e existindo um ambiente de desmoralização dos poderes públicos, configura-se o círculo vicioso da violência.  A falta de oportunidades para os pobres serve de desculpa social para a violência. Se pobreza fosse motor do crime, o mais pobre dos estados brasileiros teria elevadíssimos índices de criminalidade.  


 


Em Brasília, a situação do trânsito era infinitamente menos grave do que a criminalidade no Rio.  Mesmo assim, o trânsito caminhava para uma situação intolerável. A morte do menino produziu um novo mundo, determinou o ponto de equilíbrio. Gerou uma reação do poder público e da sociedade que terminou servindo para melhorar e muito o trânsito na cidade. Rompeu-se uma conduta culturalmente irresponsável. O atropelamento terminou fazendo a diferença. Milhares de brasilienses foram poupados por causa do sacrifício do menino. Não é consolo para seus familiares. Porém, sua morte teve o caráter de transformar para melhor.


 


Um livro de Malcon Gladwell (O Ponto de Desequilíbrio) trata de eventos que mudaram o curso da história. Um dos casos abordados é o processo que determinou a redução dramática da violência em Nova York como conseqüência da política conhecida como tolerância zero.  No Brasil, Maluf e Roriz, entre outros, lançaram mão da tolerância zero como factóide. Não é privilegio deles. Na verdade, nenhum governador ou presidente da República nas últimas décadas teve estômago para enfrentar de verdade a questão da criminalidade.  


 


O devastador episódio ocorrido no Rio de Janeiro pode ter o condão de transformar o Rio e o Brasil caso governo e sociedade passem a tratar do tema como prioridade total e absoluta em tempo integral. E tenham coragem para tal.   


 


 


Murillo de Aragão é mestre em Ciência Política, doutor em Sociologia pela UnB e presidente da Arko Advice Análise Política.